domingo, 22 de agosto de 2010

Pio XII e a Segunda Guerra Mundial: A questão judaica

Quando Hitler subiu ao poder, em 30 de janeiro de 1933, os nazistas puderam finalmente pôr em prática o programa do Partido para a Alemanha. A década de 1930, de fato, constitui a passagem da ideologia da década anterior para a prática política. O antissemitismo, uma das bandeiras nacional-socialistas, agora podia ser mais abertamente disseminado através da doutrinação em massa e da implantação de políticas específicas, muito embora permanecesse, dentro da esfera de prioridades do Reich nascente, em segundo plano.

Desde o começo, a preocupação do novo governo era expurgar os judeus da vida pública alemã. Isso era feito basicamente por dois modos: através de leis antissemitas, que iam retirando paulatinamente do judeu a cidadania alemã, e por atos de violência esparsa contra alvos judeus com o intuito de amedrontar essa comunidade e forçá-la a emigrar.

As leis antissemitas começaram a aparecer logo em 4 de abril. Restringiam as condições sociais, políticas, legais e econômicas dos judeus na Alemanha. Um decreto do dia 7 de abril de 1933 expulsou todos os não-arianos do serviço público e do magistério. Outros que se seguiram no mesmo ano e no ano seguinte, excluíram os judeus das associações de esportes, da cultura, do trabalho em jornais, no teatro e nos cinemas. Em 1935, como que coroando o trabalho dos dois anos anteriores, foram promulgadas as famosas Leis de Nuremberg, as quais estabeleciam que os judeus, por não terem sangue ariano, eram uma raça estranha ao corpo da sociedade alemã e estavam excluídos oficialmente dela. As Leis de Nuremberg iriam ser utilizadas como fundamento para o planejamento da Solução Final em 1941 (ROSEMAN, 2003, p. 132).

O outro modo de intimidação direta contra os judeus foi a violência. Em primeiro lugar, a violência econômica: em abril de 1933, um boicote geral foi feito, com o patrocínio do governo, aos estabelecimentos judaicos na Alemanha. Entre os objetivos da emigração estava a sanha avarenta de tomar os bens dos judeus, aos encargos de Herman Göring, um dos principais líderes nazistas.

A perseguição de Göring aos judeus era feita em grande parte em termos econômicos. Tendo as leis raciais promulgadas em Nuremberg, em 1935, à sua disposição, ele usurpava as propriedades dos judeus e, a pretexto de “organizar” as firmas de elementos dessa raça, ele acabava por proibir a participação dos judeus na vida industrial do país. Nesse período, a política alemã era toda dirigida no sentido de voar no dinheiro e nas propriedades dos judeus. Com este objetivo, encorajava-os a fugir, depois de persegui-los e ameaçá-los, deixando para trás suas riquezas e possessões básicas.

No começo de 1938, já toda a propriedade judia se encontrava catalogada (MANVELL, 1974, p. 94).

A violência física contra os judeus era promovida principalmente pelas tropas de assalto nazistas, as SA e posteriormente pelas SS, violência que se estendia a todos os críticos do regime, como os católicos, as Testemunhas de Jeová (por se recusarem a prestar serviço militar obrigatório), os comunistas. A Gestapo agia no sentido de exercer o controle sobre os suspeitos, investigando os potenciais adversários, reais ou imaginários. Nesse ambiente crescente de medo e insegurança, a comunidade judaica foi cada vez mais se encolhendo e o objetivo nazista foi se realizando: promover a imigração dos judeus da Alemanha, como assinala Mark Roseman: “A maré de medidas discriminatórias que engolfou a comunidade judaica com velocidade tão vertiginosa movia-se rumo à meta de uma sociedade livre de judeus” (ROSEMAN, 2003, p. 16).

A emigração judaica posta a cabo pelos nazistas era contraditória. Uma vez que o confisco governamental direto e indireto e o apartheid judeu levavam ao seu empobrecimento, os judeus em território alemão tinham cada vez menos condições econômicas para emigrar, da mesma forma que se tornava cada vez mais difícil os países aceitarem levas de imigrantes judeus em seu solo. Muitos saíram no período de emigração “voluntária” entre 1933 e 1939: cerca de meio milhão (BLESSMANN, 2003, p. 107). Os demais resolveram ficar na Alemanha, mas já constituíam uma comunidade encolhida e aterrada, vivendo de economias e da caridade entre eles (ROSEMAN, 2003, p. 16). Após o Anschluss[1], em 1938, foi criada uma agência para a emigração judaica em Viena e em janeiro de 1939, pouco depois da explosão de violência antijudaica na chamada Kristallnacht (noite dos cristais, alusão aos estilhaços de vidro das lojas judaicas depredadas) em 9 de novembro de 1938, que deixou um saldo de 851 lojas destruídas, 191 sinagogas incendiadas e 76 demolidas, 91 judeus mortos e 20 mil presos em campos de concentração (BLESSMANN, 2003, p. 118), foi estabelecida uma agência de emigração para todo o Reich. Esta agência seria responsável, mais tarde – em 1941 – por organizar toda a Solução Final da Questão Judaica, ou seja, o genocídio dos judeus.

Entre os historiadores mais equilibrados, há a convicção clara que o Holocausto judaico não estava nos planos nazistas nos anos 1930. Mesmo o uso de uma linguagem homicida por parte de Hitler e da elite nazista não implicava necessariamente que se pensasse em algo como um genocídio ou mesmo um assassinato em massa. O esforço que o governo nazista fez para excluir o judeu da vida pública “não fazia sentido se a política tivesse em vista, mesmo secretamente, o assassinato. As metas principais dos nazistas até a guerra foram suprimir a influência judaica, suprimir a riqueza judaica e suprimir os judeus da Alemanha” (ROSEMAN, 2003, p. 16). A emigração dos judeus da Alemanha era a meta que Hitler tinha em mente.


[1] Anexação da Áustria à Alemanha. Cf, adiante, "O trabalho do Cardeal Pacelli".


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sábado, 17 de outubro de 2009

Pio XII e a II Guerra: A Ascensão do Nazismo e a Igreja Alemã

CAPÍTULO II

OS DIFÍCEIS ANOS 1930

2.2 A ASCENSÃO DO NAZISMO E A IGREJA ALEMÃ

Enquanto isso, na Alemanha, o governo da moribunda República de Weimar preparava-se, finalmente, para assinar uma Concordata com o Vaticano depois de muitos anos de negociações. A situação da Alemanha, no início dos anos 1930, era econômica e politicamente muito preocupante, sobretudo pelas sucessivas crises econômicas agravadas pela Grande Depressão de 1929, que fez cessar o fluxo de investimentos financeiros americanos. Embora todo o mundo estivesse sofrendo com a crise, esta se apresentou particularmente grave na Alemanha, mais grave do que em qualquer outro país europeu. Além disso – e também por causa disso – o sistema democrático parlamentar alemão passava por uma crise sem precedentes, com o povo faminto e desempregado, sem nenhuma perspectiva de vida, questionando-se sobre a utilidade de um sistema que não conseguiu, em pouco mais de uma década, tirar a Alemanha do buraco em que se achava desde o fim da Guerra. Foi nesse ambiente social desgastado, terreno fértil para as aventuras totalitárias, no qual a pobreza e o desemprego reinavam e as instituições eram corroídas pela crise e pelas disputas políticas, que o partido de Hitler foi paulatinamente crescendo na preferência popular.
"Nacionalistas, banqueiros, industriais e o eleitor comum estavam todos convencidos, durante os anos de 1931 e 1932, que o partido nazista era o único que poderia impor ordem às coisas do estado e resolver o problema dos desempregados, que somavam já mais ou menos 3 milhões, por volta de 1930. Este número aumentaria para 8 milhões em 1932, muitos deles ingressando nas fileiras das SA[1], para ter algo que fazer" (MANVELL, 1974, p. 40).
Nas eleições de 14 de setembro de 1930, os nazistas conseguiram seis milhões e meio de votos, um total de 107 cadeiras no Reichstag, o parlamento alemão, contra as doze que tinham adquirido nas eleições de 1928. Nas eleições presidenciais de 1932, Hitler obteve onze milhões de votos contra dezoito milhões do presidente eleito Paul Von Hindenburg, mas sua posição se tornou bem confortável para o futuro. Nas eleições de julho de 1932, os nazistas conseguiram 230 cadeiras. Em novembro, perderam 37 dessas vagas, mas através de manobras e conchavos políticos, Hitler conseguiu ser nomeado chanceler em 30 de janeiro de 1933. Acusando os comunistas de conspirarem contra o novo governo, e dando como prova o incêndio do prédio do Reichstag, atribuído a eles, Hitler assinou, em 23 de março, a Lei de Exceção que concedia ao governo o poder de governar por decretos, Lei que o parlamento acatou por meio de ameaças e pressões. Todo o processo estaria completo com a supressão do cargo de presidente, quando Von Hindenburg falecesse, o que ocorreu em agosto de 1934. Nascia, assim, a ditadura hitleriana.
Foi nesse ambiente que os acertos finais para a Concordata do Reich foram tomados. A necessidade dela tornou-se ainda mais premente diante do novo governo, que, se não promovia abertamente uma perseguição contra os católicos, permitia sub-repticiamente que tal acontecesse a nível local pela ação dos grupos paramilitares nazistas. A Concordata foi assinada em 20 de julho de 1933, em Roma, pelo Cardeal Secretário de Estado Pacelli, representando a Santa Sé, e pelo vice-chanceler do Reich, Franz Von Papen, representando a Alemanha. Pelo acordo, ficavam reconhecidas as Concordatas anteriores assinadas com os estados alemães (Baviera, Prússia, Baden), a Igreja Católica gozaria de plena liberdade religiosa no Reich, as faculdades de teologia seriam mantidas nas universidades estatais, assegurava-se a educação religiosa nas escolas, mesmo as não-confessionais, possibilitava-se a ação pastoral nos hospitais e no Exército e prometia-se a proteção das associações católicas com finalidades religiosas, culturais, educativas e profissionais (MARTINA, 1997, p. 174). Em contrapartida, o episcopado deveria reconhecer a legalidade do novo regime, os bispos nomeados pelo Papa deveriam prestar juramento ao Estado antes de assumirem suas dioceses e o clero não poderia envolver-se em qualquer tipo de política. Esta última exigência praticamente obrigava a dissolução do Zentrum, o partido católico de centro, que constituía uma significativa oposição ao governo, uma vez que aquele tinha ampla participação do clero, inclusive tendo um padre como presidente do partido, Monsenhor Ludwig Kaas, o qual era também estreito colaborador do Cardeal Pacelli. Mas a relação entre a assinatura da Concordata e a dissolução do Zentrum, dada como certa por Cornwell (2000, p. 122-174) ainda é discutida entre os historiadores (MARTINA, 1997, p. 173-174).
Desde muito cedo a Igreja Católica na Alemanha tinha percebido o caráter anticristão do Partido Nazista. Os católicos foram terminantemente proibidos de se afiliarem ao Partido[2], cujos membros não podiam participar dos sacramentos nem tampouco serem sepultados nos cemitérios da Igreja. A postura era a mesma da Santa Sé. Mesmo o hostil Cornwell (2000, p. 132) admite que “o Vaticano não era absolutamente favorável ao Partido nazista. A Santa Sé não endossava o racismo implícito ou explícito do nacional-socialismo. Alertava para o seu potencial de instituir um credo idólatra, baseado em fantasias pagãs e uma história folclórica espúria”.
Os nazistas, por sua vez, reclamavam da oposição católica que encontravam em todos os lugares da Alemanha por parte dos fiéis, dos intelectuais, do clero e do episcopado. A primeira condenação formal dos bispos aconteceu na Baviera em 1931. Logo outras dioceses importantes como Colônia e Padeborn juntaram-se às condenações. Depois das eleições de julho de 1932, com a vitória dos nazistas, todos os bispos alemães, reunidos em Fulda para a sua Conferência Geral, denunciaram os nazistas por suas doutrinas pagãs e seus métodos violentos e hostis à fé e à moralidade. Mesmo depois da subida de Hitler ao poder, os bispos ainda mantinham uma condenação geral, que foi aos poucos declinando. Diante da assinatura da Concordata e da linguagem adocicada acompanhada de lisonjas e garantias que Hitler oferecia à Igreja, alguns bispos se viram em dúvida a respeito do regime e foram obrigados a atenuar as condenações e deixar ao clero o juízo de casos específicos. Hitler tinha proibido os nazistas de exporem publicamente suas opiniões a respeito da religião já em 1927 (CORNWELL, 2000, p. 121) e promovia uma política de boa vizinhança e colaboração entre a Igreja e o novo Estado alemão. É verdade que alguns caíram na demagogia do Führer, como o abade beneditino Alban Schachleitner, mas Hitler sabia que um confronto direto com a Igreja Católica poderia desencadear uma forte oposição ao nacional-socialismo, como aconteceu durante a repressão católica conhecida como Kulturkampf durante o Primeiro Reich de Otto Von Bismarck, no século XIX. Internamente, todos os membros do partido tinham o cristianismo como um inimigo em potencial. Alfred Rosenberg, o ideólogo do partido, dizia: “Catolicismo, protestantismo e judaísmo deverão deixar campo livre a uma nova concepção de mundo, de modo que destes não fique nem a lembrança” (GASPARI, 1998 apud BLESSMANN, 2003, p. 121). A revista nazista Deutsche Volkskirche escreveu: “Toda acomodação entre a Igreja Romana e o Nacional-Socialismo é impossível; apenas pode haver um conflito para vitória ou derrota” (RYCHLAK, 2000 apud BLESSMANN, 2003, p. 122). No Mein Kampf (Minha Luta), seu livro programático e de memórias, Hitler tinha escrito que eliminaria o cristianismo logo depois do judaísmo; ele tencionava criar uma religião nazista, baseada no mito da raça e do sangue e tendo como objeto de culto ninguém menos do que ele próprio[3]. Na verdade, “Hitler pretendia a total extinção da fé tradicional dos cristãos, por meio de restrições e de um terror em escala crescente” (BLESSMANN, 2003, p. 123). Apesar disso, ele tentava evitar toda e qualquer confrontação aberta com o catolicismo, que era uma força importante dentro da sociedade alemã.
Dentro dessa lógica, Hitler empenhou-se ao máximo para ter um acordo concordatário com a Santa Sé em moldes semelhantes ao que Mussolini conseguiu com os Pactos de Latrão. Ele achava – ou pelo menos se gabava disso publicamente – que a Concordata era um endosso moral da Santa Sé ao novo Reich. Logo após a assinatura da Concordata, Hitler disse que “o fato de o Vaticano estar concluindo um tratado com a nova Alemanha significa o reconhecimento do Estado nacional-socialista pela Igreja Católica. Esse tratado comprova para o mundo inteiro, de maneira clara e inequívoca, que a insinuação de que o nacional-socialismo é hostil à religião não passa de uma mentira” (SCHOLDER, 1987 apud CORNWELL, 2000, p. 147). A visão de Pacelli era muito diferente. Para começar, ele negou categoricamente que o acordo fosse um endosso ao regime nazista em um artigo publicado no L’Osservatore Romano (jornal oficioso da Santa Sé). Para ele, a Concordata constituía uma base jurídica para defender os católicos das eventuais perseguições que, com certeza, adviriam no futuro. De fato, houve 34 protestos da Santa Sé contra violações da Concordata desde que esta foi assinada até 1937, quando a situação se tornou insustentável e obrigou a uma condenação enérgica por parte do Pio XI.
No decorrer dos anos 1930, a Igreja na Alemanha se viu amplamente perseguida. A perseguição não era nem aberta nem sistemática; cá e lá, em diversas partes do Reich, as autoridades locais ou os milicianos nazistas eram incentivados desde as altas esferas do governo – mas sem comprometê-lo – a cometer pequenos e médios atos contra os católicos. Assim, por exemplo, "cinco dias após sua assinatura [da Concordata do Reich] foi aprovada a lei de esterilização; e após mais cinco dias o líder da Ação Católica Alemã, Dr. Erich Klausener, foi assassinado. Em quatro anos centenas de padres católicos foram presos, sendo que pelo menos 127 foram enviados para campos de concentração; propriedades da Igreja foram confiscadas; a imprensa católica foi gradativamente sendo suprimida; as escolas católicas foram sendo fechadas[4]; a juventude foi afastada da família e da Igreja, pois as reuniões dos ramos da Juventude Hitlerista (praticamente todos os adolescentes a elas pertenciam, por livre vontade ou sob pressão) eram feitas nas manhãs dos domingos, única oportunidade, naquela época, de cumprir o preceito de missa dominical" (BLESSMANN, 2003, p. 77).
"Uma intensa campanha difamatória foi feita por radiofonia, revistas e periódicos; os católicos eram caluniados e declarados inimigos do Reich. Entre as calúnias estava a que afirmava que as sacristias viraram bordéis e os monastérios locais de homossexualidade. Católicos foram proibidos de organizarem reuniões públicas, mesmo que para fins estritamente religiosos. Conventos foram declarados excessivos, e mais de 600 freiras professoras foram excluídas do ensino e intimadas a encontrarem empregos civis. Só na Baviera foram 367 as freiras excluídas do ensino nas escolas; também não podiam trabalhar em creches e jardins de infância. (...) Os sacerdotes e religiosos ficavam sob vigilância constante, mesmo dentro das igrejas e durante os cultos. Eram denunciados à Gestapo se apresentassem a doutrina católica de um modo que não fosse do agrado dos nazistas" (BLESSMANN, 2003, p. 123-124).
Alguns se insurgiam e criticavam o governo de maneira bastante incisiva, como o jesuíta Josef Spieker, o primeiro sacerdote enviado a um campo de concentração por ter dito numa homilia da festa de Cristo Rei, em 28 de outubro de 1934, que o único Führer da Alemanha era Cristo[5]. Também o padre Bernhard Lichtenberg foi condenado a dois anos de prisão por ter rezado pelos judeus na Catedral de Santa Edwiges em Berlim depois da Kristallnacht e o jesuíta Rupert Mayer foi condenado a seis meses de prisão, em 1937, por pregar contra o antissemitismo nazista (CORNWELL, 2000, p. 206). Alguns bispos corajosos também se pronunciaram contra o regime, como Konrad Von Preysing de Berlim, Clemens August Von Galen de Münster e o cardeal arcebispo de Munique Michael Von Faulhaber, que chegou a dizer num sermão: “Não podemos jamais esquecer: não somos salvos pelo sangue alemão. Somos salvos pelo sangue precioso de Nosso Senhor crucificado” (CORNWELL, 2000, p.180)[7]. A maior parte do episcopado, no entanto, preferiu não bater de frente com Hitler enquanto ele não fosse abertamente contra o cristianismo e promovesse uma perseguição sistemática. Hitler negava todas as acusações de perseguição e para os que protestavam lembrava a sorte dos católicos nos países comunistas.


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[1] SA: Sturmabteilung, as tropas de assalto de Hitler.
[2] Esta proibição foi imposta pelo episcopado já em 1932 e revalidada em 1933, sendo reiterada nos anos de 1934, 1935, 1936 e 1938 (BLESSMANN, 2003, p. 166).
[3] O Doutor Felix Kersten, médico pessoal de Heinrich Himmler (o famigerado chefe das SS (Schutzstaffeln – Tropas de Proteção) e da GESTAPO (Geheimestaatspolizei – Polícia Secreta do Estado), e homem mais poderoso do Reich depois de Hitler), disse que Himmler tinha lhe dito em certa ocasião, pouco antes da ocupação da França (junho de 1940): “Depois da vitória do III Reich (...) o Führer abolirá o cristianismo em toda a Grande Alemanha, isto é, na Europa, e levantará sôbre (sic) as ruínas a fé germânica. Conservaremos a idéia (sic) de Deus mas de maneira vaga e indistinta. O Führer substituirá o Cristo como Salvador da Humanidade. Assim, milhões e milhões de pessoas só professarão o nome de Hitler em suas preces e daqui a 100 anos nada se conhecerá senão a nova religião” (KESSEL, 1966, p. 82-83).
[4] As escolas confessionais católicas na Alemanha eram mais de 15 mil (MARTINA, 1997, p. 176; ZAGHENI, 1999, p. 289).
[5] No sentido de que Cristo era o único chefe (Führer) da Alemanha e não Hitler.
[6] Faulhaber também fez uma série de cinco célebres sermões, durante o Advento, defendo o Antigo Testamento das acusações nazistas. Em outra ocasião, diante das críticas de Rosenberg à sua pessoa, o Cardeal declarou que Rosenberg “escreveu que não estima o Arcebispo de Munique, porém o Arcebispo deveria envergonhar-se até desaparecer se homens de tal índole o estimassem” (GASPARI, 1998 apud BLESSMANN, 2003, p. 166).
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sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Pio XII e a II Guerra... - A Itália dos anos 1930

CAPÍTULO II

OS DIFÍCEIS ANOS 1930

2.1 A ITÁLIA DOS ANOS 1930


No dia 16 de dezembro de 1929 realizou-se um Consistório para a elevação de novos purpurados ao cardinalato. Nesta ocasião, os arcebispos de Lisboa, Palermo (Itália), Gênova, Armagh (Irlanda), Paris, e o até então Núncio Apostólico na Alemanha, Eugenio Pacelli, receberam o chapéu cardinalício. Agora, faziam parte do seleto grupo de cardeais que elegeriam o Papa num futuro conclave. Mas, como dito, o motivo principal para que Pacelli fosse elevado à dignidade de Cardeal-Sacerdote de Santi Giovanni e Paolo foi a sua escolha para assumir o delicado cargo de Secretário de Estado do Vaticano, o mais poderoso na hierarquia vaticana depois do Papa. O Secretário de Estado era o responsável último por toda a burocracia do Estado do Vaticano e da alta cúpula da Igreja Católica, e o grande articulador das relações entre o Vaticano e as outras nações do mundo, além de auxiliar o Papa em toda sorte de trabalho, como dar pareceres sobre diversos assuntos para que este tomasse as decisões. No decorrer da década de 1930, o agora Cardeal Pacelli exercerá, concomitantemente ao cargo de Secretário de Estado, outras funções na Igreja como Arcipreste de São Pedro, Legado Papal e Camerlengo[1].

A Itália que Eugenio Pacelli conheceu quando voltou da Alemanha era governada, desde 1925, por um carismático e autoritário político, Benito Mussolini, chefe do Partido Fascista, fundado por ele em 1919 como um movimento de ideias e transformado em Partido em 1921[2]. Em 11 de fevereiro de 1929, o governo fascista assinou com a Igreja os Pactos de Latrão, dos quais faziam parte um Tratado que resolvia a antiga Questão Romana e uma Concordata com o Estado italiano. Ambos definiam as relações entre Igreja e Estado na Itália, reconheciam o Vaticano como Estado independente dentro da cidade de Roma, com um território de 44 km² e todos os direitos e prerrogativas soberanas: “poderes legislativo, executivo e judiciário; bandeira, polícia e moedas próprias; faculdade de imprimir selos; telégrafo e até uma pequena ferrovia” (MELO, 1974, p. 34). O Estado italiano adotaria o catolicismo como religião oficial do Estado, reconheceria o Código de Direito Canônico de 1917 e garantiria o reconhecimento civil dos casamentos religiosos na Itália, além do direito da Igreja de fundar escolas e promover amplamente a educação católica. O acordo regularizava, ainda, o estatuto do movimento laical da Ação Católica enquanto associação religiosa e apolítica[3].

No entanto, um acordo com um governo autoritário que tenta regular a vida inteira dos cidadãos não poderia ser sustentado sem percalços. Os primeiros atritos entre o governo italiano e a Santa Sé aconteceram justamente por causa da Ação Católica, o único movimento católico permitido pelos Pactos Lateranenses. Ondas de quebra-quebras, intimidações, ameaças, violências e fechamento de grupos do movimento, tudo sob a acusação de que estes eram usados para ação política, criaram um clima de franca hostilidade entre o governo italiano e a Santa Sé. Em 1931, a situação chegou a um nível tal que o papa Pio XI viu-se obrigado a protestar oficialmente e em termos enérgicos na encíclica Non abbiamo bisogno, que se levantava contra “o propósito (...) de monopolizar inteiramente a juventude (...) para a plena e exclusiva vantagem de um partido, de um regime, sobre a base de uma ideologia que explicitamente se resolve em uma verdadeira “estadolatria” pagã, em aberta contradição, tanto com os direitos naturais da família, como com os direitos sobrenaturais da Igreja” (PIO XI, 1931, n. 23, tradução nossa). A violência atinge agora amplamente os grupos católicos. Somente pela pressão do governo americano, que negociava com a Itália uma ajuda econômica para a grande crise que esta atravessava, é que os ânimos dos fascistas arrefeceram. No começo de 1932, por ocasião do terceiro aniversário dos Pactos de Latrão, Mussolini visitou o Papa pela primeira vez, numa atitude de conciliação. Logo após, os dois lados celebraram um acordo que permitiu aos grupos da Ação Católica voltarem a funcionar na Itália.

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[1] O Arcipreste de São Pedro era responsável pelo cerimonial nas grandes celebrações pontifícias na Basílica de São Pedro. O Legado Papal era escolhido como representante do Papa para alguma ocasião especial a que este não pudesse comparecer. O Camerlengo era responsável pelo governo dos bens temporais da Igreja no período de ausência do Papa; ele também organiza os funerais do Papa falecido e preside uma comissão de Cardeais responsáveis por cuidar dos assuntos urgentes da Igreja durante o tempo da sede vacante.
[2] Para um resumo da política fascista e de suas realizações sociais, cf. Zagheni (1999, p. 267-270).
[3] Os Pactos de Latrão previam, além de tudo, um acordo financeiro no qual a Santa Sé receberia cerca de um bilhão de liras e uma renda de cinco por cento sobre os títulos italianos como modo de ressarcimento pelo confisco dos bens eclesiásticos pelo Estado italiano no século anterior. Para mais detalhes sobre os Pactos, cf. Veruso (1996, p. 58-63) e Forty (1969, p. 8).

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quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Pio XII e a II Guerra... - As relações diplomáticas entre a Alemanha e a Santa Sé

CAPÍTULO I
EUGENIO PACELLI

1.5 AS RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS ENTRE A ALEMANHA E A SANTA SÉ
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Logo que a Constituição de Weimar foi assinada, tornou-se imprescindível o estabelecimento de relações diplomáticas que ajudassem a Alemanha a sair da grave crise por que passava. A Santa Sé podia oferecer uma importante oportunidade para que o novo governo obtivesse mais rapidamente o reconhecimento internacional. Por isso, as negociações entre a Santa Sé, representada pelo Núncio Pacelli, e a Alemanha foram rapidamente concluídas e em 27 de setembro de 1919, ficou acertado que o Barão Diego Von Bergen seria o primeiro Embaixador alemão junto à Santa Sé, enquanto que o Núncio Pacelli estenderia seu trabalho de representante papal não só ao Estado da Baviera mas a toda a Alemanha. Assim sendo, em 30 de junho de 1920, Pacelli apresentou suas credenciais diplomáticas ao presidente da República, Friedrich Ebert, tornando-se o Decano do Corpo Diplomático acreditado junto ao novo governo. Entretanto, não se mudou imediatamente para Berlim, permanecendo ainda em Munique até agosto de 1925, quando concluiu uma Concordata entre a Santa Sé e o Estado da Baviera.
A rivalidade entre os Estados da Baviera e da Prússia não permitiu que esta última ficasse sem um acordo semelhante com a Santa Sé. Mas as negociações não ocorreram com a mesma facilidade, já que num dos dispositivos cruciais do acordo, a questão das escolas, as duas partes não chegavam a um consenso. Isso porque a Igreja queria ter o controle da educação católica nas escolas confessionais, o que ia de encontro a um princípio básico do Estado prussiano que era o de regular todo o sistema educacional. Depois de muitas e longas negociações, a Concordata foi assinada em junho de 1929, sem tocar no dispositivo das escolas. Esta questão só seria resolvida na futura Concordata do Reich.
Durante os doze anos a frente da nunciatura apostólica na Alemanha, Monsenhor Eugenio Pacelli adquiriu grande fama por suas qualidades pessoais. Assim o descrevia a irmã Pasqualina Lehnert, sua governanta e confidente, depois de sua morte: “Ele conquistou o coração de todo mundo por sua modéstia refinada e nobre... por toda parte ele se revelava o superior príncipe da Igreja, mas ao mesmo tempo humano e sensível” (LEHNERT, 1982 apud CORNWELL, 2000, p. 117). Excelente anfitrião das recepções diplomáticas da nunciatura, o Núncio era considerado o diplomata mais bem informado de Berlim, quiçá, da Alemanha inteira (CORNWELL, 2000, p. 116-117). O próprio Kaiser Guilherme II descreveu Pacelli como “uma pessoa atraente e distinta, possuidora de uma inteligência superior e de excelentes maneiras. O perfeito modelo de um eminente prelado da Igreja Católica Romana” (MELO, 1974, p. 27). Ele, que inicialmente tinha certa dificuldade para falar o idioma alemão, conseguiu não apenas a fluência nessa língua, mas adquiriu também uma grande simpatia pelo povo alemão, “em que (sic) admira o gosto pela exatidão, o senso de responsabilidade e de organização, o respeito à palavra dada e o amor à disciplina – qualidades que concordam com o seu temperamento” (MELO, 1974, p. 28).
Todo o trabalho de Pacelli como núncio, sobretudo o seu zelo no socorro aos desassistidos, foi relembrado e sentido pelo povo alemão quando, no fim de 1929, ele foi chamado de volta a Roma para ser elevado ao cardinalato e assumir a Secretaria de Estado do Vaticano em lugar do Cardeal Pietro Gasparri. O então presidente, o Marechal-de-Campo Paul Von Hindenburg, desejou prestar-lhe uma homenagem em nome de todo o povo alemão com uma sessão solene na Ópera Kroll. O presidente tinha dito a ele, em outra ocasião: “Eu lhe agradeço por tudo o que realizou durante todos estes anos pela causa da paz, inspirado por um elevado senso de justiça e um profundo amor à humanidade; e posso assegurar que não vamos esquecê-lo, nem o trabalho que fez aqui” (HATCH, 1957 apud CORNWELL, 2000, p. 119). Uma grande multidão acompanhou o cortejo que o levou à estação ferroviária, donde partiria para Roma. Em sua cidade natal, ele encontraria muito trabalho na medida em que as trevas se adensavam na Europa.
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quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Pio XII e a II Guerra... - Nomeação para Núncio na Alemanha

CAPÍTULO I
EUGENIO PACELLI
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1.4 NOMEAÇÃO PARA NÚNCIO NA ALEMANHA
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O ano de 1917 viu acontecer fatos importantes que iriam repercutir no mundo inteiro durante todo o século XX.
A Guerra Mundial entrava num momento crítico para os Aliados. Bucareste ocupada pelos alemães, ofensivas sem efeito, várias derrotas na guerra de submarinos e a não entrada dos americanos no conflito, tudo isso tornava a vida difícil para os Aliados. Por fim, a Rússia principiou a mergulhar no caos revolucionário.
A revolução russa iniciou-se em 8 de março com a deposição do czar e a instauração de um novo tipo de regime: a ditadura do proletariado. O movimento comandado por Vladimir Lenin e Joseph Stalin espalhava-se por toda a Rússia e se voltava contra as igrejas cristãs. A perseguição aumentava a cada dia e o Papa chegou a pedir um sinal do céu para reanimar a Igreja.
O sinal veio a 13 de maio: em Portugal, na Cova da Iria, próximo do pequeno vilarejo de Fátima, três crianças que pastoreavam ovelhas, Francisco e Jacinta Marto e sua prima Lúcia dos Santos, disseram ter visto uma senhora bela, em vestes resplendentes como o sol, anunciando-se como a Virgem Maria, Mãe de Deus. Ela trazia uma mensagem de conversão e penitência, conclamando o mundo a rezar pela paz e pela conversão da Rússia. As aparições ocorreram durante os seis meses seguintes, sendo que a última delas, a 13 de outubro, foi acompanhada de sinais cósmicos vistos por mais de setenta mil pessoas, reunidas no lugar.
No mesmo instante em que a Virgem apareceu pela primeira vez aos pastorinhos, o Papa Bento XV sagrava seu Secretário de Assuntos Extraordinários como Arcebispo de Sardes. O objetivo da sagração era enviar Pacelli como Núncio Apostólico[1] para a Baviera, no lugar de monsenhor Giuseppe Anversa que falecera no começo do ano. A contragosto, pois desejava estar perto da mãe doente em Roma – seu pai falecera um ano antes –, Pacelli aceitou a delicada missão e, cinco dias depois da sagração, partiu para Munique, onde permaneceria por oito anos.
O Estado da Baviera, cuja capital era Munique, sempre foi um Estado de maioria católica, sendo um dos poucos lugares da Alemanha nos quais a Reforma Protestante de Lutero não prosperou. A ligação, portanto, deste Estado com o Vaticano vinha de longa data: desde 1786 havia um representante do Papa junto ao governo, um Núncio Apostólico (LEEN, 195-, p. 52). Mesmo depois da unificação alemã, em 1870, a Baviera, bem como os outros estados alemães, embora unidos como nação – o Reich (Império) –, constituía uma unidade federativa com relativa autonomia em relação ao governo central de Berlim, possuindo uma organização administrativa e legislativa própria. A Baviera era o único Estado alemão que possuía relações diplomáticas com o Vaticano. Daí sua importância como porta de entrada para o estabelecimento de relações mais amplas com o Reich.
No dia 25 de maio de 1917, o Núncio Eugenio Pacelli chegou a Munique e se instalou no prédio da Nunciatura, no número 15 da Brennerstrasse. A recepção oficial deu-se três dias depois, no palácio real da Baviera, onde foi recebido pelo rei Luis III e por toda a corte, com grande pompa. Mas seu encontro mais importante com as autoridades alemãs deu-se um mês depois, em 28 de junho, quando entrevistou-se com o próprio Imperador, o Kaiser Guilherme II, em seu quartel-general em Kreuznach, na Renania. Ali, Pacelli revelou sua principal missão àquela altura: apresentar ao Imperador um plano de paz proposto pelo Papa Bento XV. Este plano previa, basicamente, a livre navegação dos mares, o controle dos armamentos, negociações sobre as fronteiras entre França e Alemanha e entre Áustria e Itália, a preservação das colônias alemãs e a independência da Bélgica. Mas o Kaiser se recusou a levar em conta essas propostas, alegando para isso a má vontade dos inimigos da Alemanha em negociar a paz e a não-culpa dos alemães pela deflagração do conflito. No fim das contas, parecia aos dois lados que a vitória na Guerra ainda era possível e havia pouca disposição de ambas as partes para sentarem juntas e negociarem.
Tendo malogrado o plano de paz do Papa, o Núncio Pacelli dedicou-se, nos meses seguintes, a socorrer os afligidos pela guerra, organizando tal rede de ajuda que superaria a da Cruz Vermelha (MELO, 1974, p. 27), inclusive instando ao Papa a criação de um serviço especial de alívio para as vítimas da Guerra em todo o continente. Ele visitou toda a Alemanha, levando a ajuda material e espiritual da Igreja, inclusive indo pessoalmente vistoriar os campos de prisioneiros de guerra. Seu trabalho assistencial estendeu-se até depois da Guerra. A cidade de Munique, reconhecida pelo trabalho benemérito do Núncio, deu o seu nome a uma das ruas da cidade, que passou a se chamar Pacellistrasse.
A Guerra terminou em 11 de novembro de 1918, com a assinatura de um armistício por representantes alemães. O Kaiser abdicou e fugiu para a Holanda; o chanceler Max de Baden transferiu o governo para um presidente interino, Friedrich Ebert, do Partido Social- Democrata Alemão. Começou um período negro para a Alemanha.
"Não houve uma transição suave para a democracia. Os Aliados empurraram a Alemanha para um vazio político, provocando uma profunda mudança revolucionária e o caos econômico e social, que por sua vez acarretou fome, distúrbios e greves. Por algum tempo, parecia que o triunfo bolchevique na Rússia seria repetido na Alemanha" (CORNWELL, 2000, p. 87).
Munique, sede da Nunciatura, foi um dos principais focos do terrorismo bolchevique na Alemanha. Durante certo período, no fim de 1918 e começo de 1919, o Núncio retirou-se, para a sua segurança, para uma casa religiosa na Suíça. Quando voltou, no começo de 1919, a situação ainda era grave e havia de piorar. Um governo bolchevique tinha sido instalado na cidade e promovia o terror revolucionário, com seqüestros, prisões arbitrárias, censura, confisco de bens, violação dos direitos civis, fome e tudo o mais que acarreta uma revolução. Nem o estatuto de extraterritorialidade das embaixadas estrangeiras foi respeitado. Por diversas vezes a nunciatura foi invadida, e, numa delas, o próprio Pacelli teve uma arma apontada para sua cabeça. A situação só melhorou em agosto, com a instauração de um regime republicano alemão, a chamada República de Weimar, alusão à cidade onde foi ratificada a nova Constituição.
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[1] Os Núncios eram representantes do Papa junto aos diversos países e são considerados como parte do corpo diplomático e verdadeiros embaixadores da Santa Sé.
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Pio XII e a II Guerra... - O Código de Direito Canônico e a Primeira Guerra Mundial

CAPÍTULO I
EUGENIO PACELLI
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1.3 O CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO E A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL
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Logo que foi ordenado, Pacelli iniciou os estudos de Direito Canônico, tendo adquirido seu Doutorado em 1904. Na época, reinava o Papa Pio X. Justamente nesta época, ele foi incumbido por Monsenhor Gasparri (que seria criado Cardeal em 1907) de codificar o Direito Canônico, uma tarefa faraônica que consistia em reunir, para depois sintetizar e atualizar, todos os decretos e leis eclesiásticas em todo o mundo, desde a fundação do cristianismo, que estavam contidos em mais de dois mil volumes (LEEN, 195-, p. 41-42). Esse trabalho monumental, auxiliado por mais de quinhentos colaboradores em 63 nunciaturas espalhadas pelo orbe, consumiria Pacelli em meio a todas as suas outras atribuições na Secretaria de Estado e nas missões especiais de que era incumbido, sem esquecer ainda sua atividade pastoral, por cerca de doze anos, sendo o Código de Direito Canônico promulgado pelo papa Bento XV em 1917.
Para que tal Código fosse realmente efetivo, era necessário harmonizá-lo com as diversas leis já existentes na Igreja; isso, sobremodo, servia para as Concordatas que eram acordos que a Santa Sé fazia com os Estados que o requisitavam de modo a regular as relações Igreja-Estado[1]. Esse trabalho de harmonizar o Código com as leis eclesiásticas e as Concordatas será entregue a Pacelli, que se desincumbirá dele com perfeição durante seus trabalhos como diplomata do Vaticano, até sua eleição a Papa. Para tanto, foi lhe dado, em 20 de junho de 1912, o título de Monsenhor[2] e o cargo de Pró-Secretário da Congregação dos Assuntos Eclesiásticos Extraordinários. Ele será promovido a Secretário dois anos depois, a 1º de fevereiro de 1914.
Desde o ano anterior, Pacelli tinha sido designado pelo cardeal Merry del Val, Secretário de Estado, para dirigir as negociações de uma Concordata com a Sérvia. O documento foi assinado em 24 de junho de 1914, cinco dias antes do assassinato, em Sarajevo, do arquiduque austríaco Francisco Ferdinando, fato que foi considerado o estopim para a Primeira Guerra Mundial. Autores como Cornwell (2000, p. 64) querem fazer crer que a Concordata Sérvia teria ajudado a exaltar os ânimos das partes em tensão, sobretudo a Áustria, que teria sido prejudicada em seus direitos de protetorado sobre a Sérvia. Segundo ele, a Concordata “sem a menor sombra de dúvida, contribuiu para as reparações duras que o Império Austro-Húngaro exigiu da Sérvia, tornando a guerra inevitável”. A consequência inevitável de tal asserção é que teria sido Pacelli, como principal negociador da Concordata como representante do Vaticano, um dos principais responsáveis pela deflagração da Primeira Grande Guerra, o que Cornwell insinua claramente.
Uma vez estourada a Guerra, o Papa Bento XV assume uma posição de imparcialidade perante as coalizões beligerantes, uma vez que há católicos em ambos os lados do front e recusa-se veementemente a tomar parte no conflito, de forma análoga ao que fará Pio XII durante a Segunda Guerra. Tal atitude lhe valeu, decerto, antipatias. Quando lhe pediram que protestasse contra as atrocidades cometidas pelos alemães em combate, lembrou que os aliados também cometeram atrocidades e que ele, em sua posição, não poderia condenar umas sem deixar de condenar também as outras. Incompreendido, foi chamado de “Judas XV” pelo escritor Leon Bloy, que julgou que o Papa teria traído a causa dos aliados. Enquanto isso, Pacelli continuava seu trabalho de codificação do Direito Canônico e seu esforço por harmonizar as leis eclesiásticas vigentes com o novo Código.

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[1] Existiam três tipos de acordos que a Santa Sé assinava com os Estados nacionais: o Modus Vivendi, a Convenção e a Concordata. Os dois primeiros eram acordos simples que regulavam algumas questões particulares, que variavam de nação para nação, como por exemplo, a nomeação dos bispos, os limites das circunscrições eclesiásticas, a salvaguarda de associações católicas. Acordos como estes foram assinados com a França (em 1926), com Portugal (1928 e 1929), com a Tchecoslováquia (um Modus Vivendi, em 1927). Já as Concordatas eram acordos mais amplos e que envolviam vários aspectos que regulavam a convivência entre a Igreja e o Estado. Os acordos dividiam-se em três grupos, cada qual com suas peculiaridades: os assinados com Estados predominantemente católicos (Baviera, 1924; Polônia, 1925; Lituânia, 1927; Itália, 1929; Áustria, 1933), onde se buscava, em síntese, conseguir para o catolicismo o status de religião oficial; os firmados com Estados com forte e significativa presença católica (Tchecoslováquia, 1927; Baden, 1932; Prússia, 1929; Alemanha, 1933), tinham por objetivo adquirir certas facilidades mais ou menos importantes quanto às questões de educação católica e subvenção econômica; finalmente, os assinados com países com minorias católicas (Letônia, 1922; Romênia, 1927 e 1932), reivindicavam o princípio da liberdade religiosa e reconhecimento do catolicismo em par de igualdade com as outras religiões. O que havia de comum a todos esses acordos era a faculdade de livre escolha dos bispos pela Santa Sé, podendo o Estado objetar o escolhido por motivos políticos; o clero e os responsáveis pelas ordens e congregações religiosas deveriam ser cidadãos do país e deveriam estar afastados da militância política (VERUSO, 1996, p. 56-58).
[2] “O título de monsenhor é conferido pelo Papa a um clérigo, por mérito ou antiguidade de serviço, ou como categoria correspondente às tarefas confiadas aos seus cuidados” (LEEN, 195-, p. 40), este último sendo o caso de Pacelli. Ele também seria nomeado Cônego da Basílica de São Pedro, cujo cabido era responsável pelo canto solene do Ofício Divino, a oração oficial da Igreja (LEEN, 195-, p. 40).

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terça-feira, 13 de outubro de 2009

Pio XII e a II Guerra... - O Padre Pacelli

CAPÍTULO I
EUGENIO PACELLI
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1.2 O PADRE PACELLI
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Na época de Leão XIII, a Secretaria de Assuntos Eclesiásticos Extraordinários era o equivalente a um Ministério das Relações Exteriores: era, portanto, um órgão importante, que cuidava das relações da Igreja com as outras nações. Seu secretário era Monsenhor Pietro Gasparri, um homem de temperamento forte e enérgico. Sabendo ele das grandes capacidades de um jovem sacerdote romano chamado Eugenio Pacelli, foi recrutá-lo pessoalmente para a carreira diplomática segundo a disposição de Dom Giacomo Della Chiesa, Subsecretário de Estado – o qual mais tarde se tornará Papa sob o nome de Bento XV –, que queria sangue novo e apto para trabalhar na Cúria Romana. O jovem Pacelli, muito empenhado em seus trabalhos como pastor – havia dois anos era coadjutor de sua paróquia de origem, a Chiesa Nuova –, resistiu a princípio, dizendo que “preferia continuar a ser pastor de almas” (LEEN, 195-, p. 39). Mas, objetou-lhe Gasparri: “Desejais ser pastor de almas, mas eu desejo que sejais cão de cordeiros, para afugentar os lôbos (sic) que atacam o rebanho do Senhor” (LEEN, 195-, p. 39). E arrematou: “Você pensa que servir à Igreja não é igualmente servir às almas? No dia em que a Igreja relaxar seu governo, as almas conhecerão o mais grave perigo e a Igreja estará ameaçada. Preciso de diplomatas, de homens de governo que imponham a Igreja ao mundo. Não lhe dou oportunidade de escolha. Fique a partir de amanhã a serviço do secretário de Estado” (MELO, 1974, p. 22). Nestes termos, quem ousaria recusar?
Portanto, no início de 1901, Eugenio Pacelli apresentava-se na Secretaria de Estado para começar seu trabalho como aprendiz, ao mesmo tempo em que continuava seu Curso de Doutorado em Direito Canônico e, depois, em Diplomacia. Três anos depois, o Padre Pacelli é promovido ao cargo de minutante, que equivale ao de escrevente, tendo de elaborar esboços de documentos.
Neste mesmo ano, ele é incumbido de sua primeira grande missão diplomática – ele tinha sido antes enviado à Inglaterra por ocasião da morte da rainha Vitoria como representante papal –: vai à França, como mensageiro secreto do papa Pio X ao cardeal De La Vergne, arcebispo de Paris, reafirmando o apoio pontifício à Igreja da França, que sofria grave perseguição no início do século (CORNWELL, 2000, p. 58-60). Mais tarde, em 1910, ele irá novamente à Inglaterra como ajudante do arcebispo Granito Pignatelli, que representará a Santa Sé na coroação do rei Jorge V.
Mas o trabalho de Pacelli não se resumia à frequentemente árida vida burocrática e diplomática. Ele também exercia a cura de almas, embora não tanto quanto desejasse. Era capelão do Instituto da Assunção e assiduamente ouvia confissões na Chiesa Nuova, além de pregar retiros no Convento das Damas do Cenáculo e dirigir espiritualmente uma ou outra alma necessitada de orientação. Ainda encontrava tempo para se dedicar a uma grande paixão sua, a música, tocando ao violino e acompanhado ao piano por Giuseppina, sua irmã mais velha, diversas peças de Beethoven, Bach, Debussy ou Hindemith, seus compositores prediletos.
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